Afinal, o que é a realidade? Será que já não vivemos em um mundo distópico?

neuromancer
 “Eu não tinha um manifesto. Eu tinha descontentamento. Me parecia que a ficção científica americana popular do meio do século era, na maioria das vezes, triunfante e militarizada, uma espécie de propaganda popular para a excepcionalidade americana. Eu estava cansado da América ser o país do futuro, o mundo como uma única cultura branca, o protagonista ser o mocinho de boa família de classe média ou mais rica. Queria mais espaço para me mexer. Queria abrir espaço para os anti-heróis.”
– William Gibson

Por Luisa Santos

Matrix. Ciberespaço. Hologramas. Engenharia Genética. Um bom fã de ficção científica já ouviu falar de pelo menos um desses termos, e é impossível pensar em uma boa história do gênero sem eles. Menos conhecido, entretanto, é o romance que os popularizou, ainda que esses termos hoje em dia nos sejam recorrentes. Recentemente lançado pela editora Aleph, Neuromancer, de William Gibson, apesar de ser considerado um dos 100 maiores livros da língua inglesa pelo New York Times, é ainda um ilustre desconhecido em terras brasileiras. Não devia. Sua genialidade e atemporalidade o tornam leitura quase essencial não somente para os fãs de ficção científica, mas para o público em geral.

Neuromancer foi o livro que sintetizou as características de um ramo da ficção científica que viria a se tornar extremamente popular nos anos seguintes: o cyberpunk, melhor explicado no ditado “High-tech, low-life”, ou seja, tecnologia de ponta e baixa qualidade de vida. Contrastando fortemente com o saudosismo positivista da ficção científica dos anos anteriores – bem exemplificado em Star Trek, clássico da ficção científica e característico por seu otimismo referente às relações interpessoais e homem-máquina – o cyberpunk se foca em sociedades futurísticas distópicas, onde o brutal avanço da tecnologia não melhora em nada a vida de grande parte da população mundial.

Isso é muito claro na obra de Gibson. A tecnologia permitiu a criação do Ciberespaço, representação gráfica de dados abstraídos de todo e qualquer computador do mundo, chamada Matrix; a engenharia genética já permite criação de órgãos sob medida, a engenharia biomédica já desenvolve equipamentos que funcionam em perfeita simbiose com o corpo humano e a perfeição física é barata – entretanto, os grandes aglomerados urbanos e a falta um governo que regule o poderio das grandes corporações fazem com que grande parte da população do fim do século XXI viva em uma constante luta pela sobrevivência. O protagonista da história não é nenhuma exceção.

Henry Case é um cowboy, alcunha dada aos hackers especializados em quebrar o ICE (Acrônimo de Intrusion Countermeasures Electronics, Contramedidas Eletrônicas de Intrusão), ou o software de proteção de grandes empresas que funciona de maneira semelhante a um firewall, e roubar informações valiosas para quem estiver disposto a comprá-las. Case era um dos melhores do ramo, até decidir roubar de seus empregadores. Injetado com uma micotoxina que atacou diretamente seu sistema nervoso, ele perde a habilidade de se conectar à Matrix. Mesmo os médicos especializados em neurocirurgia do Japão – centro de todo avanço tecnológico, o lugar onde ficam as maiores corporações e lar da Yakuza – não conseguiram consertar o dano que os fungos fizeram em seu cérebro. Desempregado, Case cai em uma espiral de drogas e autodestruição que é certa de levá-lo diretamente para a cova.

Sua sorte muda quando aparece Molly, uma “Razor Girl” – mulher cujo corpo é alterado para servir aos seus propósitos; no caso de Molly, as lâminas retráteis implantadas atrás das unhas escarlates, lentes para melhora da visão implantadas nos olhos e sentidos, metabolismo e reflexos aumentados por implantes cirúrgicos a tornam ideal para seu trabalho de mercenária. Ela o recruta a mando de Armitage, homem misterioso que aparenta apenas seguir ordens de alguém mais poderoso e que propõe que, em troca da restauração de seu sistema nervoso, Case trabalhe para ele como hacker. Sem pensar duas vezes, Case aceita a proposta.

Molly, entretanto, o convence a investigar o passado Armitage, e descobrem que por trás dele, há Wintermute, uma inteligência artificial criada pela empresa Tessier-Ashpool S.A. Wintermute, entretanto, é apenas metade do que a Tessier-Ashpool o projetou para ser, e precisa encontrar sua outra parte para se tornar completo. É aí que Case descobre o que foi realmente contratado para fazer – driblar as regras de Turing, que limitam o poder de inteligências artificiais, e hackear a outra metade de Wintermute, Neuromancer, em uma missão praticamente suicida, para que ambas se juntem novamente.

Gibson criou uma obra tão ampla que é impossível cobrir todos os seus aspectos. Os mais marcantes, talvez, sejam a crueza de um futuro em que as relações interpessoais foram tão coibidas e tolhidas pela tecnologia que não há confiança ou relações duradouras mais. O modo como o mundo encara a própria humanidade também é brutalmente transfigurado pela tecnologia incessante – a feiura é considerada quase ofensiva, como mostram diversas partes do livro, já que beleza física é facilmente alcançável e economicamente viável. Neste futuro, nos distorcemos, alteramos, modificamos, melhoramos, mas continuamos mesquinhos, egoístas e cruéis. Talvez ainda mais cruéis, já que é notória a capacidade humana para a crueldade, principalmente em situações de grande estresse.

William_Gibson_by_FredArmitage

William Gibson

Emoções são características que herdamos dos animais; crueldade, por outro lado, é uma invenção humana. Na gana de se modificar em busca do que é perfeito, a humanidade deixa de lado o que a faz humana, propriamente falando, e neste processo se torna cada vez mais cruel. A falta de empatia é, talvez, um dos aspectos mais marcantes do livro: não há clemência, não há piedade, não há solidariedade nem compaixão no mundo de Neuromancer. Há o dinheiro, e cada um por si, na antiga lei do mais forte – neste caso, dinheiro é a força. As grandes corporações tomam o lugar dos governos, que se tornam omissos e passíveis, se é que existem de maneira efetiva, e comandam o mundo inteiro de acordo com seus interesses.

Em decorrência disto, há uma fragmentação do conceito de Estado. Case nasceu na Sprawl, a conurbação que vai desde Boston a Atlanta, passando por Nova York e Washington, formando uma megacidade que por vezes é também chamada de BAMA – Boston-Atlanta Metropolitan Axis, ou Eixo Metropolitano Boston-Atlanta – mas em nenhum momento diz que é americano, ou que a Sprawl faz parte dos Estados Unidos. Há menções de uma guerra entre Estados Unidos e Rússia, que acaba com a fragmentação da CIA e do Pentágono; não seria difícil inferir, portanto, que os Estados Unidos acaba, eventualmente, se fragmentando. A dissociação das pessoas do conceito do nacional, de cultura e identidade próprias é uma consequência do processo de globalização avançadíssimo do fim do século XXI. É claro a orientalização do ocidente, aspecto tão fortemente marcado em Blade Runner – o Japão, enquanto centro de tecnologias, exporta não só a tecnologia propriamente dita como também sua cultura. Em algumas passagens, é mencionado que mulheres da Sprawl fazem cirurgia para terem os característicos olhos orientais – um processo que acontece reversamente hoje em dia, onde japonesas fazem cirurgia para obter olhos ocidentais – por exemplo. Isso não impede, entretanto, que a cultura e os hábitos de outros países se disseminem, e a confluência de diversas pessoas de diversos lugares é enfaticamente mostrada ao decorrer da história.

A tecnologia é outro ponto principal. Avançadíssima, a ciência atingiu feitos que para nós, vivendo nos primórdios do século, ainda parecem inatingíveis, e continua a avançar em uma velocidade que a humanidade não consegue acompanhar propriamente. Já mencionamos a avançada engenharia genética e biomédica e seus avanços, mas é correto dizer que, no que se refere a desenvolvimento, Neuromancer foi bem gentil com a ciência em geral. Hologramas, chips de crédito que não precisam de senha, carne para consumo criada em tanques, órgãos, entretenimento, colonização espacial – a ciência avança a passos rápidos, mas mesmo todo seu avanço não fornece melhor qualidade de vida para a população. Muito pelo contrário – a privatização de todo conhecimento científico produz uma concentração econômica jamais vista. Os ricos são poucos, mas muito ricos, e as corporações são tão poderosas que parecem ter vida própria. Já aí se percebe o traço mais marcante do cyberpunk – high tech, low life – que Neuromancer introduz brilhantemente.

No campo literário, Gibson foi genial ao fazer uma total inversão dos papéis de gênero. Molly é a responsável pelo trabalho pesado, infiltração e roubo, pelo assassinato a sangue frio e por sujar as mãos, trabalhos tradicionalmente associados com a figura masculina. Case, por outro lado, é passivo, e para fazer seu trabalho coloca-se em uma posição vulnerável, necessitando de proteção, características tipicamente femininas. As noções de gênero e tabus já não significam muita coisa no livro – com uma humanidade que se aproxima cada vez mais de um calculismo computadorizado, as regras que ditam as relações humanas se tornam irrelevantes.

Além disso, seus personagens não lutam por um mundo melhor, não lutam para salvar o planeta ou o país, não lutam para fazer a vida das pessoas mais fácil. Tanto Case quanto Molly lutam para salvar o próprio couro. Novamente, a lei da sobrevivência impera. Em nosso ímpeto de nos tornarmos mais, mais racionais e mais perfeitos, acabamos voltando ao instinto animal de lutar ou correr, de nos salvar e sobreviver, mesmo que isso signifique na morte do outro. Case não é nenhum Captain Kirk ou Luke Skywalker; ele não é abnegação nem sacrifício. Case é egoísmo e egocentrismo, mas retém grande parte de sua humanidade, um dos poucos que o fazem ao decorrer da história, e por isso que ele se destaca.

Neuromancer foi o ponto de partida para um gênero que contesta a ciência enquanto agente responsável por mudar o mundo. Gibson interpreta corretamente as relações de poder que ditam os rumos da ciência, e faz uma hipérbole do mundo atual, onde há tecnologia demais, dinheiro demais, desigualdade demais e humanidade de menos.

Há quem diga que Neuromancer é apenas uma previsão infundada, um conto de aviso para que não nos esqueçamos da nossa humanidade. Talvez. Mas, fazendo uma análise dos últimos dez anos, vemos que a tecnologia deu um salto tremendo. Abolimos as teclas. Abolimos os teclados. Informação vai e vem com a mesma facilidade que correntes de ar vem e se vão. Dinheiro corrido em papel se torna um incômodo – moedas, nem se fala. Cada vez mais estamos fechados dentro da nossa bolha pessoal, recebendo informações de uma grande rede de compartilhamento de dados. A tecnologia permite que a perfeição física seja facilmente atingida. A ciência funciona em prol dos poderosos, e a qualidade de vida não teve uma melhora exatamente significativa. Temos cartões de identificação, achamos planetas que podem ser habitados, e cada vez mais nos esquecemos do que nos faz humanos para correr atrás do que nos dá poder. Disquetes foram substituídos por CDs, que foram substituídos por pen-drives, que vão sendo substituídos por Nuvens de Dados na rede. A tecnologia é mais rápida do que podemos acompanhar.

Talvez Neuromancer não seja mais do que uma distopia exagerada, um mundo sem possibilidade de acontecer. Mas olhando para trás, talvez não seja tão impossível assim. Talvez, em um futuro próximo, a internet seja a nossa Matrix.

Talvez ela já seja.

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