Até que ponto podemos deixar a tecnologia invadir a nossa vida?

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“Neuromancer é a tecnologia enquanto agente impassível, constante, onisciente e onipresente, calculista; Mona Lisa Overdrive mostra a tecnologia que almeja tudo que compõe um humano. São dois polos extremos e completamente diferentes, conectados por uma mistura de ambos – Count Zero – e que compõem um monumento à genialidade de William Gibson.”

Por Luísa Santos

Que a ficção científica deve muito a William Gibson é inegável – O autor revolucionou o gênero quando publicou Neuromancer e abalou novamente suas estruturas com Count Zero. Mona Lisa Overdrive, livro que fecha a chamada Trilogia do Sprawl, não seria diferente. Entretanto, os fãs mais prosaicos de Neuromancer se espantarão – e muito – com a obra.

Publicado em 1988, Mona Lisa Overdrive não é somente a continuação de Neuromancer – é sua completa antítese. Onde o primeiro é cálculo, descrições minuciosas e razão fria, o último é sentimento, fluxo de consciência e emoção; Neuromancer é a tecnologia enquanto agente impassível, constante, onisciente e onipresente, calculista; Mona Lisa Overdrive mostra a tecnologia que almeja tudo que compõe um humano. São dois polos extremos e completamente diferentes, conectados por uma mistura de ambos – Count Zero – e que compõem um monumento à genialidade de William Gibson.

Assim como seu predecessor, Count Zero, a história se divide – desta vez, entretanto, em quatro ramos. O primeiro se trata de Kumiko, a filha de 13 anos de um chefão da Yakuza que é enviada às pressas para Londres, para ser protegida de uma guerra entre facções da máfia japonesa. O outro nos apresenta Slick, um mecânico que após ter seu sistema nervoso completamente bagunçado ao servir pena na cadeia, passa a viver em uma fábrica abandonada e construir robôs feitos de materiais recicláveis e de um dia para o outro se vê responsável por um homem mantido vivo por meio de aparelhos, cujo nome verdadeiro – todos se referem a ele como Conde – e origem são completamente desconhecidos. Angie Mitchell, a filha do cientista Mitchell de Count Zero, retorna como uma internacionalmente famosa e rica artista de Stim (algo parecido com as atrizes de novela) cujo implante neural que a permite acessar a Matrix sem os trodos também permite que às entidades da Matrix fragmentada exerçam um controle sobre-humano sobre ela; por fim, conhecemos Mona Lisa, uma prostituta de 16 anos viciada em drogas, sem nenhum objetivo de vida, uma grande fã de Angie e que acaba envolvida em um esquema para sequestrar a artista.

São quatro histórias diversas, mas com premissas muito simples. Este é um dos aspectos principais de Mona Lisa Overdrive – Neuromancer apresentou uma história complexa, cheia de detalhes e minuciosamente detalhada; Mona Lisa Overdrive, na realidade, apesar de introduzir novos personagens e ser tão complexo quanto o primeiro, se ocupa em finalizar todas as linhas iniciadas em Neuromancer. Desta forma, vários personagens dos livros anteriores fazem pelo menos uma aparição em algum ponto do livro – Angie Mitchell, como já dito, Bobby Newmark, o Finlandês e, para a alegria de todos os fãs da série, Molly Millions também faz um retorno triunfal, apesar de agora ser conhecida como Sally Shears. Ficamos sabendo também do que aconteceu com Case, 3Jane e o império Tessier-Ashpool. Gibson, entretanto, não perde o fio da meada, e faz uma conclusão tão brilhante quanto inesperada.

O processo de desaceleração da história, iniciado em Count Zero, é aprofundado em Mona Lisa Overdrive. O tempo cronológico dá espaço ao tempo psicológico, o que é particularmente útil para o tipo de personagem trabalhado na obra – nenhum dos quatro principais tem uma noção exata de tempo. Kumiko mal saiu da infância, Gentry não pode confiar no próprio cérebro, Angie tem sua noção de mundo constantemente alterada pelos Loa e Mona passa grande parte de seu tempo drogada. Ao trabalhar com o tempo psicológico, Gibson perde grande parte da precisão e racionalidade que marcaram fundo Neuromancer, mas ganha grande liberdade para tratar da pessoa humana, seus sentimentos e emoções.

Isto é particularmente significativo, já que se percebe uma valorização da humanidade, do que é intrínseco ao homem e não à máquina. Desta forma, há uma completa inversão de valores na relação homem-máquina, um processo iniciado em Count Zero e que é aprofundado e concluído em Mona Lisa Overdrive. Ter humanidade, para a Matrix, é estar em constante mudança, processo esse que ocorre perfeitamente. Fragmentada em entidades Vodu para melhor ser representada, a Matrix, ao fim de Mona Lisa Overdrive, é uma inteligência artificial, um universo paralelo, uma reunião de dados, um constructo de personalidade – tudo isso em uma coisa só, trabalhando para seus próprios fins. Desta forma, além de humana, ela se torna extremamente poderosa.

A Matrix não é algo só, ela é algo em si, algo que não pode ser controlado, algo que é tudo em um. Ela controla as vidas e os destinos de quem desejar, altera vidas e dados, coloca quem quiser no topo e acaba com quem quiser, sem admitir interferência em seus planos. Ela se torna a personificação de Deus, a união perfeita entre humanidade e máquina, sem um resquício da exatidão da qual nasceu. Assim, respondem-se os questionamentos levantados em Count Zero: a perfeição é emoção, sentimento, coisas intrínsecas à humanidade, e o conhecimento infinito, intrínseco à máquina, juntos e unidos. A perfeição é a perfeita união do homem e da máquina. A Perfeição é extremamente poderosa. E perigosa.

Perigosa porque a Matrix foi desenhada para ser território neutro, reproduzindo um mundo onde quem mandava era quem tinha mais dinheiro. Agora, isto é irrelevante, já que a Matrix, enquanto entidade, pode criar e derrubar impérios com facilidade. A Matrix manda no mundo, e não é difícil inferir que o mundo inteiro sofrerá com sua arbitrariedade.

Entretanto, esta perfeição não é estável. A constante mutação da Matrix faz com que as pessoas que nela estão se confundam. Isto é claro com a reaparição de Lady 3Jane, que na sua ânsia de correr das inteligências artificiais criadas por sua mãe e que se fundem na Matrix, gasta todo o dinheiro dos Tessier-Ashpool em construir sua própria Matrix, seu próprio mundo – um biochip chamado Aleph. Ela carrega seu constructo de personalidade no Aleph antes da morte de seu corpo físico, mas não consegue escapar da Matrix, que faz seu próprio plano para tomar o Aleph de 3Jane – plano este que é o que conecta todas as pontas soltas da trilogia.

É correto dizer, portanto, que presenciamos em toda a trilogia do Sprawl um processo de humanização – a humanidade em si, a sociedade, as máquinas, a Matrix, se iniciam frias e calculistas, para irem se aquecendo e terminarem humanas novamente. Há aspectos, porém, que permanecem os mesmos, como a ineficiência e inexistência dos governos e a preponderância das corporações – o mundo como é conhecido está ruindo e nem mesmo a polícia de Turing diz um “a” – e o individualismo. Nenhum personagem da trilogia do Sprawl está interessado em salvar o mundo, nem em morrer pelo bem maior. Todos eles preferem salvar a própria pele. Entretanto, isto não os impede de se preocupar com as pessoas que gostam, e talvez o diferencial da humanidade atual com a humanidade futurística de Gibson seja que a humanidade do futuro não se preocupa com discursos grandiloquentes de bem maior e ideais máximos. Mal existe política. A Matrix, enquanto um espelho da sociedade da época, também age de acordo com seu egoísmo narcisista.

No campo da ciência, as inovações não deixam em nada a desejar. A consolidação do Biochip, novos utensílios e novas Inteligências Artificiais – o mundo futurístico de Gibson pode ser bem desanimador, mas a tecnologia é fabulosa. É este o ponto principal de seus livros. De que adianta uma tecnologia tão avançada que pode criar uma entidade tão similar a um Deus Onisciente, onipotente e onipresente, quando a maior parte da população não pode colher seus frutos? Este questionamento se aplica também aos dias de hoje. Nosso avanço tecnológico é tão rápido que mal se tem tempo de acompanhá-lo; nossas relações interpessoais, entretanto, se deterioram cada vez mais.

Neste conceito, a Trilogia do Sprawl cumpre fantasticamente seu papel de proferir um alerta. Longe da ficção científica positivista do meio do século XXI, sua narrativa extremamente complexa não tenta ser um alento ao leitor, um cafuné na cabeça, dizendo que as coisas vão terminar bem – é justamente o contrário, um alerta. Nosso processo agressivo e desmedido de desenvolvimento nos levará à falta de nós mesmos.

Charles Chaplin, em seu discurso no filme O Grande Ditador, diz: “A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco”. Esta é uma boa descrição do mundo do Sprawl. Entretanto, a insustentabilidade da perda da humanidade leva a própria máquina a agir e buscar ser humana. O leitor é levado a várias reflexões, mas dentre elas, uma se destaca – até que ponto pode-se deixar a tecnologia invadir a minha vida?

Neuromancer, Count Zero e Mona Lisa Overdrive são obras de ficção, e assim devem ser tratadas. Entretanto, o que se faz quando o mundo em que vivemos torna-se, dia após dia, mais semelhante ao mundo distópico criado por William Gibson? Não se sabe. A resposta mais viável parece ser agarrar-se à humanidade como um bote salva-vidas, e no mar da tecnologia agressiva e invasiva que nos cerca, resistir obstinadamente a afundar.

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