Realidade, humanidade e personalidade na ficção científica de Phillip K. Dick

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por Luísa Santos/Agência Pixel

Que ficção científica sempre foi um prato cheio para o cinema ninguém duvida, mas ninguém deu mais pano para manga que Phillip K. Dick. O autor, também conhecido como PKD, nasceu em 1928, na cidade de Chicago, nos Estados Unidos. Conhecido e celebrado por sua contribuição à ficção científica, produziu uma vasta coleção de novelas, contos e livros, ao longo de seus 53 anos de vida, que serviram, em sua grande maioria, de inspiração e material para filmes de sucesso, como Blade Runner, O Vingador do Futuro e Minority Report.

Ainda que os filmes baseados em seus escritos tenham sido sucesso de bilheteria no Brasil, PKD ainda é um ilustre desconhecido aqui no Brasil. A fim de divulgar a obra intrigante do autor, a editora Aleph traz para o mercado o livro “Realidades Adaptadas”, com sete contos que já serviram de inspiração ou de fonte para produções famosas do cinema. A trama consistente, as reviravoltas inesperadas e os finais surpreendentes são o sonho de qualquer roteirista que se preze. Mais interessante que os filmes, contudo, é a própria obra de Philip K. Dick.

Ainda que nunca tenha chegado a se formar – Dick deixou a Universidade da Califórnia, em Berkeley, devido a problemas de ansiedade – sua experiência acadêmica marcou profundamente seu estilo literário, principalmente as leituras dos textos de Platão, que o levaram a contestar a própria existência do mundo. Influenciado pelo filósofo grego, o autor passou a acreditar que não há como se provar a real existência da realidade a qual vivemos, e que essa poderia ser muito bem um produto da nossa imaginação.

Essa experiência é origem de um tema recorrente na obra de PKD – a dúvida sobre a própria existência de tudo que nos cerca. Suas histórias são, grande parte das vezes, construídas de modo a colocar em xeque a realidade que, em um primeiro momento, é apresentada ao leitor. Não raro, as reviravoltas nas histórias são a própria tomada de consciência dos personagens de que a realidade em que vivem, na verdade, é uma falsa realidade.
Ainda que esse seja um tema recorrente, entretanto, não há uma sensação de repetição ou exaustão ao ler os trabalhos do autor. Pelo contrário – a genialidade está na capacidade de Dick de construir cenários novos inusitados para trabalhar uma mesma questão.

Isso é possível por uma concepção de realidade como um conceito composto, grosso modo, de três características principais: a certeza do eu, a certeza do mundo e a certeza sobre as pessoas que se conhece. Essa certeza pode ser entendida como conhecimento – conheço a mim mesmo, o mundo à minha volta e as pessoas que convivo – e uma crença cega naquilo que se vê. A habilidade de PKD reside justamente em alterar essas características em maior e menor medida, forçando os personagens a questionarem seu conhecimento e sua crença no real.

Exemplos são as histórias “Segunda Variedade”, onde o protagonista tem de desconfiar de todas as pessoas ao seu redor para sobreviver; “Equipe de ajuste”, em que se descobre que o mundo em que vivemos é, na verdade, um construto, e que existe uma realidade por detrás da realidade; “Impostor”, por fim, introduz o protagonista em uma situação em que ele duvida da própria existência e humanidade.

A questão da humanidade é outro ponto que permeia a obra de PKD. A nossa ideia de personalidade e alteridade está intrinsecamente relacionada com nossa ideia de realidade e, consequentemente, a nossa ideia de humanidade é imprescindível para entendermos o nosso lugar no mundo. Dick insere, em seus escritos, diversos questionamentos acerca do que significa ser humano. É ter uma aparência humana? Onde está a diferença entre ser humano e outros seres? Seria nossa racionalidade, como sempre gostamos de argumentar para nos diferenciar em outros animais? Ou seria justamente o contrário – nossa emocionalidade, e até mesmo nossa própria animalidade?

Ainda que não existam respostas concretas para essas questões, PKD constrói algumas linhas de raciocínio a partir delas. Em primeiro lugar, identifica-se uma angústia do homem com sua própria humanidade, à medida que não consegue ser perfeito. A humanidade é um entrave ao desenvolvimento da sociedade, e nesse sentido, criam-se máquinas para aprimorar e até mesmo substituir o trabalho humano, como ocorre em “Relatório Minoritário”. Por outro lado, a figura peculiar do mutante em “O Homem Dourado” exemplifica a relação de medo e adoração que a humanidade tem com algo que pode ser superior a si – ao mesmo tempo que quer se livrar da necessidade de se auto-gerir, não quer abrir mão de tomar as rédeas do seu próprio futuro.
Sobre essa discussão, a opinião de Dick é muito clara – seria irresponsabilidade crer em um homem superior que fosse capaz de sanar todos os problemas da sociedade, querendo em troca apenas nossa complacência obediente, nosso consentimento silencioso. Essa crença, ele diz, poderia nos levar a “galpões sinalizados como CHUVEIROS, mas que não são exatamente o que as placas dizem”.

Dois aspectos importantes e complementares do texto de PKD, também, são as personagens e a tecnologia. As histórias se passam, como boa história de ficção científica, no futuro – contudo, ao contrário de escritores como Aldous Huxley e William Gibson, as invenções e os avanços tecnológicos não são o foco aqui. As pessoas tem um destaque fundamental, e a história avança pelas pessoas, não pelas tecnologias – ainda que elas existam maciçamente. A diferença em PKD é que a tecnologia existe não como um fim em si mesma, mas para servir a um fim. A humanidade rouba toda a cena.

Não existem invenções marcantes como a teletela de Orwell, a Matrix de Gibson ou o soma de Huxley. A tecnologia serve de pano de fundo para o desenvolvimento das questões sobre realidade, humanidade e personalidade. Nesse sentido, as personagens de PKD são humanas, falhas, mas não heroínas – heroicas, talvez, no limite de sua humanidade. E afinal, o que mais podemos querer enquanto humanidade?

PKD deixa claro que a humanidade não se superará com máquinas ou com a vinda de uma outra espécie superior – se superará por si mesma. Não há a preocupação em estabelecer um universo sólido e consistente, mas sim uma fluidez deliberada que permite a mudança brusca de status quo, e há uma constante reafirmação de que a realidade não é o que parece, jamais.

Philip K. Dick podia não saber a resposta para todos os questionamentos que deixou, mas há de ser dito que ele sabia fazer perguntas. A prova maior é o fato de, trinta anos após sua morte, ainda estarmos nos fazendo as mesmas indagações e, pelo rumo que toma a humanidade, há de se crer que ainda estaremos nos perguntando as mesmas coisas daqui a séculos.

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